terça-feira, 24 de novembro de 2009

Sá de Miranda-soneto



O sol é grande: caem coa calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.



Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.



Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.



Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!

domingo, 22 de novembro de 2009

Um poema de um amigo...

Semântica do olhar 


1 


Como se as mãos para melhor se darem fossem senda 
Abríamos nos olhos o lugar onde deixáramos a noite 
Procura da qualidade do silêncio, da semântica da safira 
Onde o sol era fissura e anomalia, uma mentira 
Estranho, muito estranho, era o barulho do dia 
E outras ignoradas estranhezas pendiam questionantes 
Da força do destino, último sinal da existência 


2


Nenhuma bioquímica emergia agora do namoro 
Que houvesse, que há? assim se quer saber 
Em vinte outonos de assombro pelas paradas pernas 
À beira-abismo, doce tentação de continuar 
Como se chamam as ninfas duêndicas do trabalho? 
Um autocarro de lama nos estonteava a quietude 
E a garimpa do ponto de contacto era um nada 
Legítimo e acrescentado pela nossa presença em si 


3


A realidade torna-se medonha, coruscante e estentórea 
Passam, sem pausas, as imagens de outra dimensão 
Mas logo a combustão dos contornos nos faz mistura 
Mais não somos que um texto privado da particular unidade 
Com que os amores encantados se fazem distintos 
E o virtuosismo dos animais seráficos é só lembrança 
Que um vinho confraternal recorda no imperfeito 
Volvendo os suspiros ao lugar dos gritos imperecíveis 


4


De repente uma chuva pudica permitiu algumas claridades 
Em baile de livre fêmea em cima dos tijolos 
Sazonando as seivas, vento embarcando as sementes 
Sem rugidos, espelho nosso de feras cheirando 
Os aromas do habitat perdido no momento da visita 
No salto reconhecido derradeiro de quem já tudo deu. 


5


A ronda diurna de perfumes apertados em cimento 
Expôs as frágeis mãos ao domínio racional: ninguém 
Assim como nós éramos, pôde sequer pela húmida dança 
Ser tecido de andorinha, era o tempo das máscaras 
E todo o desenho era vago no seu rigor, na sua voz 
Chamante das cores e da surpresa, mas presa 
Era a humana condição de desafios mortos 
Algemas de um idioma de comunicação falho 


6


Dissemos perdidas as guerreiras túnicas 
Quando o após nos estranhou de estarmos juntos 
Mesmo depois de destruirmos a eternidade 
Em nossos endiabramentos de omissão e ausência 
Agora nos bolsos nossas mãos apagaram a luz 
Não há lume neste escuro que da noite não é 
Chama-se a violeta para tocar a viagem para dois lados 


Alberto Augusto Miranda
Semântica do Olhar, Lisboa, 1997 

stoa

Black Tape for a Blue Girl