Semântica do olhar
Como se as mãos para melhor se darem fossem senda
Abríamos nos olhos o lugar onde deixáramos a noite
Procura da qualidade do silêncio, da semântica da safira
Onde o sol era fissura e anomalia, uma mentira
Estranho, muito estranho, era o barulho do dia
E outras ignoradas estranhezas pendiam questionantes
Da força do destino, último sinal da existência
2
Nenhuma bioquímica emergia agora do namoro
Que houvesse, que há? assim se quer saber
Em vinte outonos de assombro pelas paradas pernas
À beira-abismo, doce tentação de continuar
Como se chamam as ninfas duêndicas do trabalho?
Um autocarro de lama nos estonteava a quietude
E a garimpa do ponto de contacto era um nada
Legítimo e acrescentado pela nossa presença em si
3
A realidade torna-se medonha, coruscante e estentórea
Passam, sem pausas, as imagens de outra dimensão
Mas logo a combustão dos contornos nos faz mistura
Mais não somos que um texto privado da particular unidade
Com que os amores encantados se fazem distintos
E o virtuosismo dos animais seráficos é só lembrança
Que um vinho confraternal recorda no imperfeito
Volvendo os suspiros ao lugar dos gritos imperecíveis
4
De repente uma chuva pudica permitiu algumas claridades
Em baile de livre fêmea em cima dos tijolos
Sazonando as seivas, vento embarcando as sementes
Sem rugidos, espelho nosso de feras cheirando
Os aromas do habitat perdido no momento da visita
No salto reconhecido derradeiro de quem já tudo deu.
5
A ronda diurna de perfumes apertados em cimento
Expôs as frágeis mãos ao domínio racional: ninguém
Assim como nós éramos, pôde sequer pela húmida dança
Ser tecido de andorinha, era o tempo das máscaras
E todo o desenho era vago no seu rigor, na sua voz
Chamante das cores e da surpresa, mas presa
Era a humana condição de desafios mortos
Algemas de um idioma de comunicação falho
6
Dissemos perdidas as guerreiras túnicas
Quando o após nos estranhou de estarmos juntos
Mesmo depois de destruirmos a eternidade
Em nossos endiabramentos de omissão e ausência
Agora nos bolsos nossas mãos apagaram a luz
Não há lume neste escuro que da noite não é
Chama-se a violeta para tocar a viagem para dois lados
Alberto Augusto Miranda
Semântica do Olhar, Lisboa, 1997
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