QUERELA HABITUAL
Três vezes o dragão abriu a boca. E, por três vezes, o metabolismo o obrigou a incendiar o oxigénio que o rodeava. Ficou envergonhado com aquilo. Ficava sempre.
Mas tinha que ser, são fatalidades biológicas.
São Jorge vinha num galope frenético, montando a ali¬mária imaculada das zincogravuras.
O dragão olhou a virgem, já com certa saudade ante¬cipada — e certo alívio — não não teve outro remédio. Abriu a boca pela quarta vez, incendiando tudo em redor, como de costume. Sacudiu uma fagulha demasiado quente que lhe atingira a pálpebra e dispôs-se a mais uma querela crónica.
São Jorge chegava, com a lança, a pluma no capacete renascentista e a couraça desenhada por Leonardo da Vinci. Vinha fulgurante e até extremamente gráfico, evitando que a alimária tropeçasse em demasia.
O dragão retorceu-se um pouco, fez a cena habitual e depois desistiu. Estava farto de hagiologia. Tanto trabalho também era exagero. E logo por uma virgem, que diabo!
A virgem olhou os dois. Depois resolveu-se e optou pelo São Jorge. Coitado.
Mário Henrique Leiria
Novos Contos do Gin